quarta-feira, 26 de agosto de 2009

As várias faces de um cordeiro, IX

A manhã chegara. Não titubeei em me levantar tão rápido quanto pude. As crianças compartilharam uma metade de pão comigo, comi logo que pude. Levantei-me e parti para aquela mata onde haviamos nos encontrado aquela vez, na esperança de que lá estivesse.
O caminho da ponte onde eu estava morando com aquelas crianças até a mata era longo. Quando percorria por ele, sempre observava com olhos curiosos todas aqueles clarões e alegorias que a cidade expunha. E reparando com mais atenção, percebi que tudo estava muito mais agitado do que deveria, mas não me importei muito e segui.
Quando cheguei no subúrbio que era o último lugar a passar antes de chegar na floresta, a agitação tornou-se mais intensa. Pessoas correndo e fugindo de homens com seus quepes pretos, disparando com suas engenhocas de desfazer a vida, na direção daqueles que corriam. Tentei me abrigar. Foi quando eu o vi.
Aquele homem que me assustara tanto naquela prisão reaparecia. Com seu quepe que aquela vez estava na sua mão. A minha cabeça não tomou outra decisão senão correr. Foi quando abrindo um sorriso ele disparou contra mim. Parecia que daquela vez seu dedo estava atrofiado pelo pavor da explosão, e que ele só sentiu-se aliviado assim.
O ombro esquerdo fisga. Eu sinto um pedaço de metal quente dentro de mim, e o meu sangue tão quente quanto, pulsa para fora. Tudo estava fechado, as pessoas tinham medo de todo aquele Caos que reinava lá fora. Mas um armazém todo acabado que parecia ser o começo daquilo tudo estava aberto ainda. Decidi me esconder por lá.

Eu fitei o sangue pulsar do meu corpo. E as lágrimas escorreram, e não era por dor. Era por ódio. Um ódio tão denso, quente e vermelho quanto o meu sangue. E quanto mais o sangue escorria, mais o meu ódio latejava. Escutei passos adentrando o armazém, duros, com seu toc toc querendo se abafar, como se a paciência do andar fosse disfarçar. Encontrei então, uma barra de ferro e me escondi.

"Apareça, marginalzinho! Não existem heróis para te salvarem agora! Você sabe que não adianta se esconder, você sempre foi impotente!"

Permaneci quieto. Esperei como uma cobra espera sua presa, e quando ele surgiu na minha vista eu não vi mais nada.

Eu só enxerguei depois, o corpo dele com a cabeça em pedaços e sangue, muito sangue.

E depois disso, por mais que o medo existisse ele se tornou irrelevante.

domingo, 9 de agosto de 2009

Uma conversa entre amigos, VIII

Eu tentava dormir e a cabeça não cessava. Sophie era mais forte do que o meu sono. Eu não conseguia decifrar aquela sensação pérpetua que queria me manter ao lado dela. Era incrível como os traços do seu rosto eram viciantes de se recordar. Foi então que me levantei, andei um pouco e parei diante uma poça d'água. Eu via meu reflexo tremular entre suas ondas, e me sentia inseguro. Pois a queria para mim, e sabia que queria o que não poderia ter. Percebi então que definitivamente não dormiria essa noite.
E a minha cabeça ficou tão confusa quanto as ruas daquela cidade. Tanta coisa passava por ela ao mesmo tempo, esbarrando, mudando a trajetória do pensamento, perdendo o rumo da razão. E nesse bate bate empurra empurra, me lembrei daquele dia. A primeira coisa que me recordei foi a cegueira, a segunda foi aquele sufocante cheiro de fumaça. E a terceira, simplesmente apareceu do meu lado.
Entrei em choque. Estava ali, aquele homem, com uma cigarrete de tabaco mascado, sorridente, sujo de pó. Ele aproximou-se mais, deu um daqueles tapas nas costas de velho amigo, e sentou-se do meu lado. Então ele me indagou - E então menino, o que achou da vida real? - e respondendo com toda indignação - Eu achei confusa e ilógica. As pessoas são orgulhosas e esdrúxulas com seus olhares sentenciadores e tendenciosos. Tem tanto pudor quanto são vulgares, e ainda fazem da violência tanto física como psicológica a sua melhor forma de persuasão.

Ele riu. Suspirou um Ahhh bem profundo, e disse - Você já aprendeu muito inclusive para quem acabou de sair de uma prisão. Mas se não se sente feliz, à 2 quarteirões daqui estão alguns daqueles homens que te tratavam com carinho. Garanto que se você se entregar eles serão benevolentes. - quase engasgando com suas próprias gargalhadas.
Foi quando a razão se norteu e me fez dizer:
- Com toda certeza que eu tenho, não.

Então levantando-se, ele bagunçou o meu cabelo, e insinuou - Você já mordeu o fruto, pequeno Adão.

E quando olhei pra lá ele não estava mais lá.
Então eu parei pra pensar, e notei que aquele homem na verdade não poderia passar tanto tempo preocupado só comigo. Ele tinha seus objetivos e desejos, seja lá quem for.
Eu tinha conversado com a minha consciência.


E ela realmente me fez notar o que eu demorei tanto pra perceber.


terça-feira, 4 de agosto de 2009

Peccato, VII

Estavamos nós ali, perante aquelas cores e odores. Eu, ela, e a bicicleta. Mas de primeiro momento, interessei-me repentinamente por aquele caderno onde ela anotava as coisas tão compenetradamente. - Nele eu posso escrever sobre meus ideais pra que eu nunca caia na rotina, mesmo impedida de fazer o que quero - Disse ela, sobre o caderno.
E me falava com a boca cheia de vigor sobre seus ideais de liberdade e igualdade, sobre sua sociedade ideal e perfeita, sobre uma utopia que pairava sobre seus sonhos, sendo até utópica demais para os próprios sonhos. E aquilo transpassava meu coração como se eu tivesse cansado de ouvir sobre isso, e por mais cansado que talvez eu estivesse, menos sentido fazia já que foi a primeira pessoa que me falava sobre o assunto. Talvez após ver o jeito como as pessoas exercem sua presença na sociedade eu tenha perdido qualquer chance de desenvolver uma utopia no meu coração. E talvez mesmo cansando-me, sejam suas utopias que mais tenham me atraído.
Após muito conversarmos sobre tudo, ela decidiu perguntar meu nome. E eu me sentia na obrigação de respondê-la. Envergonhado, abaixei-meu rosto ruborizado - Não tenho, ou não me deram. - E ela, com o mais sereno de seus sorrisos - Ótimo, assim sendo me dá liberdade para escolher-le um.

Estavamos debaixo de uma macieira, e com toda sua naturalidade ela levantou e colheu uma, me dizendo:
- Teu rosto está vermelho, como está maçã, símbolo do pecado. Te chamarei de Peccato.


Peccato.
Esse nome ecoou na minha cabeça como se fosse uma engrenagem que faltava pra um grande relógio.

Ela sentou, e falou que só nos envergonhamos quando cometemos algo de errado, e que por isso ela teria escolhido esse nome. E de certa forma eu me sentia mal mesmo, não me sentia bem quando pensava que estava atraído por ela, ela era demais pra um cara que até à pouco não tinha vestes nem nome. E então, recolhendo seus pertences, e sentando em sua bicicleta ela disse - Peccato, estou indo embora. Qualquer dia, nos vemos por aí. Costumo vir sempre aqui. - e antes que partisse - Me deu um nome mas não me disse o seu!


- Meu nome é Sophie.